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Genocídio palestino e holocausto: os dois lados da moeda de Lula

Atualizado: 4 de fev.

As falas do presidente, no âmago da sua polêmica, têm sido capitaneadas como subterfúgio político para malabarismos discursivos e mecanismos de distração


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem figurado no epicentro das manchetes, nacionais e internacionais, após seu polêmico posicionamento no último domingo (18) no hotel onde está hospedado na Etiópia, após realizar o discurso de abertura da 37ª Cúpula da União Africana no dia anterior. Na ocasião, abordando o conflito entre Israel e Hamas, que se desdobra há quatro meses em um cenário de total destruição no território palestino, o presidente comparou as ações de guerra israelenses àquelas perpetradas por Hitler e pelo Estado nazista contra os judeus no século passado.


A declaração foi recebida com forte descontentamento, pois representa um afronte contra a história e identidade do povo judeu, sistematicamente perseguido durante o regime alemão. Por isso, Israel classificou Lula como persona non grata, o que, em termos práticos, significa o seu descrédito como autoridade diplomática no país e a insatisfação com a sua presença. Desde então, as autoridades israelenses têm inflamado o discurso público, condenando o governo brasileiro com acusações de antissemitismo em canais oficiais e nas redes sociais.


Há um mérito e um demérito na fala do presidente que precisam ser analisados com cautela. Por um lado, tentando denotar a devida seriedade e urgência ao que está ocorrendo em Gaza, fez uma comparação infeliz e descabida com o holocausto. Conceitos servem como recursos abstratos para nos ajudar a interpretar e lidar com fenômenos complexos da realidade, e precisam ser tratados com o devido rigor, para que não se esvaziem e caiam na banalidade. Decerto, há elementos comuns entre genocídios, como a propaganda de ódio, processos sistemáticos de desumanização e a legitimação, institucional ou tácita, por parte do Estado, em exemplos como o genocídio armênio em 1915 e o extermínio dos tutsis em Ruanda, em 1994.


Os casos da Palestina e do Holocausto, todavia, não podem ser comparados para além das mortes em massa de um povo. Se, no nazismo, havia uma ideologia mítica, de cunho racial, que apregoava os judeus como uma escória humana que precisava ser aniquilada do planeta a qualquer custo, mobilizando toda uma engenharia de matança industrial que deu origem a mecanismos próprios de extermínio, como os campos de Auschwitz, o mesmo não se pode dizer sobre o conflito entre Isarael e Palestina, que se dá majoritariamente por questões territoriais, histórico-religiosas e suas consequências políticas. Daí o impacto do pronunciamento, pois foi justamente a ferida do holocausto a força motriz que deu à corrente sionista que defendia a criação de um Estado nacional para a resolução da questão judaica e sua perseguição secular.


Por outro lado, Lula deixou a cordialidade diplomática de lado diante da necessidade fulgurante e imediata de ação, contra o que está se tornando mais uma grande crise humanitária atroz que marcará a história. Até o momento, mortos e feridos contabilizam mais de 100 mil vítimas, a maioria mulheres e crianças, com mais de 8 mil desaparecidos. Após 4 meses de conflito, cerca de 70% do diminuto território palestino, um dos mais densamente populosos do mundo, está em escombros. Ao longo do conflito, os repetidos ataque de Israel miraram principalmente alvos civis, como escolas e hospitais, alguns desses invadidos por tropas em busca de radicais do Hamas.


Atualmente, a população que foge do fogo cruzado, aproximadamente 1,5 milhão de habitantes, encontra-se acuada em Rafah, cidade ao sul de Gaza e último reduto ainda não invadido. As tropas israelenses, no entanto, afirmaram preparar uma incursão para o início de março, caso o Hamas não entregue os mais de 100 reféns que mantém. As condições de vida dos civis são totalmente precárias: Falta energia elétrica, água, comida e medicamentos, e os corpos em decomposição ajudam na proliferação de doenças.


Diante disso, embora rigorosamente infeliz, o pronunciamento do presidente estava mais comprometido com a defesa da vida e da dignidade humana do que com a forma histórica. Seu discurso se expressou menos como um ataque antissemita do que como um apelo para a busca dos afetos coletivos para o ponto nevrálgico da questão: O envolvimento de centenas de milhares de civis que morrem todos os dias em detrimento da ação totalmente descomensurada por parte de Israel, que parece buscar uma dominação total, com possíveis finalidades históricos territoriais.


Longe de fazer contagem de corpos, o ataque realizado pelo Hamas em outubro de 2023, matando mais de mil israelenses, fora um ato terrorista hediondo, que merece ser devidamente responsabilizado, mas há de se reforçar que o Hamas e a Palestina não são sinônimos. Aquele representa um grupo radical, cujos atos não podem ser usados como justificativa para o extermínio de todo um povo. Neste sentido, as falas de Lula, no âmago da sua polêmica, têm sido capitaneadas como subterfúgio político para malabarismos discursivos e mecanismos de distração. No campo nacional, a oposição se aproveita da situação para encaminhar um pedido de impeachment na Câmara e instigar discursos reacionários. No internacional, Netanyahu, primeiro-ministro israelense, aproveita a questão para inflamar uma defesa de suas ações sob prerrogativa da defesa contra o antissemitismo e reafirmação da legitimidade do Estado israelense, buscando se eximir de críticas enquanto enfrenta um isolacionismo perante a reprovação das nações. Trata-se de um show de performances que, na disputa de narrativas de pequenos grupos de poder, apequena a questão central e que deveria ser o núcleo máximo das preocupações.


Uma fala controversa jamais deveria destronar, nas preocupações da opinião pública, o flagelo de uma população massacrada. Embora o povo judeu tenha, outrora, sido vítima da violência sistemática, não pode hoje legitimar as ações do Estado de Israel e assumir uma nova posição como algoz. As questões envolvendo a região sem sombra de dúvida são complexas e demandam soluções estruturantes que fogem à obviedade, mas estas devem ser alcançadas por meio de consensos mutuamente pacíficos. Que o princípio que Lula buscou falhamente expressar consiga alcançar maior clareza e que, em nome da defesa das vidas civis, possam cessar as atrocidades do conflito.

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