‘Guerra Civil’: quando a violência supera os fins políticos
- Fellipe Sena

- 26 de abr. de 2024
- 6 min de leitura
No campo de batalha, os limites políticos muitas vezes se perdem e a violência se torna uma força destrutiva autônoma

Talvez tão antigos quanto a própria história da humanidade sejam os atos de agressão contra os seus semelhantes. Seja por disputas territoriais, interesse em recursos estratégicos, litígios históricos, étnicos ou religiosos, a guerra sempre se fez presente como elemento inerente à oposição de interesses humanos. Seja como um elemento constitutivo que dotava toda a estrutura social de significado, como nos antigos espartanos, ou como genocídio deflagrado que erode todas as estruturas do Estado e coloca em risco a existência de um povo, no caso do atual conflito palestino, a guerra sempre se constituiu como um fenômeno ímpar, que permite questionar e refletir sobre diferentes aspectos do comportamento humano.
Neste sentido, o recente Guerra Civil, filme que estrela Wagner Moura, permite levantar algumas indagações importantes, considerando a escalada de tensões e os novos conflitos em escala internacional dos últimos anos. O longa aborda um cenário caótico dos Estados Unidos tomados por uma convulsão social que desembocou em uma guerra civil de larga escala. Em meio ao pandemônio, 4 jornalistas investigativos atravessam o país em busca de uma chance de entrevista com o presidente, antes que Washington seja tomada pelos insurgentes.
Por convenção, a mídia atua em cenários de conflito como elemento neutro, comprometido somente com a cobertura dos fatos e a sua publicização para a população, sem estar de qualquer modo vinculada a um dos lados em disputa. Portanto, em tese, goza de proteção jurídica e certa inviolabilidade, devendo permanecer isenta de atos deliberados de agressão por qualquer das partes. A realidade, no entanto, tem um teor muito mais sórdido, e apenas ocasionalmente segue em total conformidade com a regra. E é em meio a essa desarticulação que o filme ganha tração, expondo que, uma vez desrespeitados seus direitos, os repórteres se encontram em pé de igualdade com os combatentes que acompanham, em situações que exploram as nuances do conflito: de grupos que tentam permanecer neutros e vendam seus olhos diante da escalada de violência, até o fanatismo político e os abusos de poder no emprego da tortura e da chacina contra a população civil, que circula “desbaratinada” entre tanques e disparos de fuzil na tentativa de sobreviver.
Mas o real valor de reflexão que podemos aferir da obra se encontra a partir do que não é apresentado. Clausewitz, famoso teórico de guerra prussiano do século XVIII, gerou grande inovação ao estabelecer a relação até então desconsiderada entre guerra e política. A guerra, dizia ele, seria a continuação da política por outros meios. Isto significa que a guerra não é um elemento independente, com valor em si, que se desenvolve sob a égide de decisões militares desarticuladas da sociedade, mas o resultado de disputas de interesse entre grupos sociais politicamente organizados que definem os objetivos e os meios para fazê-la, uma vez que as vias do diálogo se mostram insuficientes para atingir os objetivos estabelecidos. Ela é, por natureza, um fenômeno social cuja condução inteira é permeada pelo debate político em ambas as partes envolvidas, determinando os recursos a serem empregados e as estratégicas a se colocar em prática. Um exemplo prático seria o debate no congresso estadunidense sobre a aprovação de um novo pacote de apoio financeiro bilionário à Ucrânia.
Todavia, em momento algum são trabalhadas em evidência as razões que levaram à guerra civil ou os interesses em disputa, tudo o que se apresenta é um governo que, na busca pela manutenção do poder contra uma população revoltosa, emprega todo o seu armamento, resultando em ostensivas mortes. Decerto, houve disputas de interesses que não foram atendidas e, durante o avanço do conflito, há lideranças responsáveis por tomar as decisões estratégicas, estabelecer os objetivos, delegar ordens e assumir a condução da guerra, mas nenhum desses elementos é realmente abordado. Diante disso, o jogo político é relegado a segundo plano, permitindo ao expectador imergir em uma apresentação tanto mais crua quanto menos romantizada da brutalidade do conflito e o emprego cego da violência, que tomam protagonismo. Trata-se de tirar o foco dos tomadores de decisão e voltar os olhos aos perpetradores diretos da ação, que em um conflito armado está sempre munida de controvérsia.
Dois momentos representam isso com notoriedade: em um deles, o grupo, ao lado de dois soldados, é alvejado por um sniper, mas é evidenciado que não sabem a qual lado da disputa ele pertence, simplesmente há uma necessidade recíproca de morte. No outro, deparam-se com soldados do governo enterrando dezenas de corpos de civis em uma vala coletiva, e têm dois companheiros que encontraram ao longo do caminho mortos, por serem estrangeiros. Esses exemplos demonstram como, muitas vezes no campo de batalha, a ordem dos fins políticos é perdida em uma espiral ascendente de violência, por meio do processo de desumanização sistemática do inimigo. Por que ele é inimigo? A falta de resposta no filme demonstra como a mesma ignorância é partilhada no campo de batalha. Não é preciso saber. Ele o é porque é, representa uma ameaça incontornável, o mal encarnado que precisa ser detido. Os civis? Se não estão aliados aos rebeldes, podem fazê-lo a qualquer momento e, se não estão conosco, estão com ele, logo também são o inimigo. O povo que se opõe a nós assume um papel de massa amorfa, sem nuances ou histórias, apenas a missão delegada para seu apagamento.
Se Clausewitz via a guerra como o meio para a imposição da vontade de um ator político, e para isso seria necessária a neutralização do inimigo pelo seu desarmamento ou rendição, na vida real, muitas vezes o interesse final de se impor é levado ao extremo, culminando na própria aniquilação do outro. Em muitos casos, não basta vê-lo rendido e incapaz de oferecer novas resistências, é preciso obliterar as ameaças presentes e futuras. Historicamente, um caso representativo foi o emprego das bombas nucleares, ao fim da Segunda Guerra, em Hiroshima e Nagasaki. A guerra já estava vencida, porém, era preciso deixar um recado a despeito da supremacia militar estadunidense como hegemonia internacional.
Nessa visão essencialista de um inimigo construído, a violência passa a ser empregada muitas vezes de forma descontextualizada e, diante da falta de limites, assume um caráter autônomo e generalizado. Alvos estratégicos se alargam para populações inteiras e toda e qualquer barbárie passa a ser aceitável diante do grande objetivo de ver este inimigo desaparecer. Esse cenário é presenciado na invasão israelense a gaza, em um genocídio deflagrado que já contabiliza mais de 30 mil mortos, dos quais a maioria são mulheres e crianças. Através de entrevistas com membros das forças armadas israelenses, os veículos investigativos locais +972 e Sichá Mekomit revelaram como as forças de Israel têm afrouxado as normas militares, empregando inteligência artificial para determinar alvos a serem mortos com base em probabilidade de serem filiados ao Hamas, sem verificação humana, e permitindo o bombardeio de zonas civis, com uma “tolerância de efeito colateral” de mortes de até 300 pessoas para cada morte de membros do grupo militar palestino.
Esses fatores evidenciam como a guerra, na prática, se torna um estado de exceção em todas as dimensões, no qual as convenções e leis internacionais têm pouca ou nenhuma efetividade. O processo sistemático de banalização do inimigo lhe dispe da sua condição humana, da sua história, e a violência passa a ser um signo imperativo de ação. A questão política em momento algum deixa de existir, ela permanece delegando a condução das operações a partir de escritórios seguros, mas no meio tático do campo de batalha, esse caráter político muitas vezes se esfumaça e a imagem do inimigo demonizado é tudo o que resta, orientando o imaginário das tropas e da população.
Talvez o ponto mais nefasto seja que todo esse entorpecimento da guerra costuma ser gerado por líderes que comumente não se envolvem na linha direta do conflito. Trata-se do famoso “nos sacrificamos na guerra que outros criaram, combatendo alguém que sabemos ser o inimigo porque assim o designaram”. Ao fim do conflito, seja pela rendição mutilada ou pela total erradicação do inimigo, esses mesmos atores políticos que lhe deram início o encerram, muitas vezes intocados, e os corpos das vítimas no fogo cruzado ficam registrados nos livros de história como números massificados. A reflexão que fica é sobre este domínio das ideias e ações, como as decisões e interesses restritos de poucos – mesmo que aleguem o interesse nacional – afetam as vidas de muitos, por vezes totalmente descontextualizados e aquém dos elementos em disputa. Diante do avanço dos conflitos internacionais na atualidade, parece que temos perdido gradativamente nossa capacidade de diálogo e recorrido com maior constância a essa ideia do inimigo. A violência cega fica como a cal que pavimenta o caminho.





