Reforma do ensino médio: lobotomia programada da juventude vindoura
- Fellipe Sena

- 17 de jun. de 2024
- 6 min de leitura
A educação brasileira é um campo político em disputa, e nos últimos anos tem se deflagrado um grande projeto de separação institucionalizada entre ricos e pobres

Qual caminho devemos seguir para melhorar a sociedade? Esta pergunta, embora soe simplória, carrega consigo uma complexidade ímpar. Fome, desemprego, violência urbana, corrupção sistêmica, mecanização e substituição da mão de obra, desequilíbrio ambiental… Estas são apenas algumas das cartas que compõem o amplo baralho da miríade de desafios que nos assolam e, sem dúvida, não há caminho unívoco para a sua solução. No entanto, é inegável que, se questionarmos um grupo de indivíduos, muito provavelmente um elemento comum, na maior parte das sugestões elaboradas, será o fator educacional.
Hoje, o Brasil vive um dos momentos mais delicados da sua história recente nessa matéria. Ao longo dos últimos anos, vimos profunda movimentação política e articulação das forças do mercado sobre a reestruturação do modelo empregado no país para o ensino médio, prometendo uma revolução na forma como formamos nossos jovens e prometendo uma nova leva de empreendedores obstinados e a atualização de uma abordagem supostamente arcaica e ineficiente. O projeto, em verdade, representa uma notória tentativa de desarticular as forças de pensamento dos extratos mais pobres da sociedade e, por meio do discurso marqueteiro neoliberal, formar indivíduos acríticos e conformados com condições de miséria. Mas para compreender o processo, é preciso primeiro refletir sobre a função da educação na sociedade.
Em termos gerais, pode-se considerar que ela representa a fundação, os pilares e a estética da edificação humana. Tem como função criar, reformular, transmitir e acumular um conhecimento que se desdobre ao longo do tempo tal qual nossas percepções do mundo se alteram e amadurecem. Dá forma ao pensamento, insere nossos padrões lógicos, de linguagem, nossa cultura, referenciais simbólicos e formas de sociabilidade. É através dela que tornamos nossas mentes estruturas pensantes operacionalizáveis, dialéticas capazes de transformar a si e ao mundo em que se inserem. Nesse sentido, ela constitui a fibra que mantém unido o tecido social, e nesse potencial altamente disruptivo de transformação que carrega, estão contidas a glória e a ruína, a depender de quem analisa.
Ora, como seria possível identificar e desvelar as relações desiguais de poder, os instrumentos de discriminação e as formas de exploração de dados grupos sem o recurso a uma visão analítico questionadora e a uma formação que a viabilize? Como lutar pela dignidade humana, o sufrágio das mulheres, os direitos dos negros e condições mais equânimes de vida sem o acesso a conteúdos de cunho histórico, político e econômico? A educação denota a apropriação de diferentes ramos do conhecimento que, quando articulados, possibilitam desocultar certas estruturas e relações de poder, passo inicial para questioná-las e lutar pela sua alteração. Em termos simples, uma população instruída é uma população combativa, que não se conforma com menos do que as condições de vida que sabe merecer.
Decerto, nem tudo se resume à educação. Quando analisou o Estado nazista e a gênese das câmaras de gás, Adorno cunhou o conceito do “embrutecimento do homem”. Referia-se à forma como as relações autoritárias recrudesciam uma apatia e falta de sensibilidade, permitindo que as maquinarias mais nefastas do regime fossem criadas por homens letrados, dotados de conhecimento e inteligência ímpares e que, portanto, segundo a lógica, deveriam também portar um senso aguçado de questionamento. A educação, assim, não é condição suficiente para aflorar a humanidade em um indivíduo, mas, inegavelmente, quando crítica e humanizada, o mune dos instrumentos facilitadores para que essa sensibilidade floresça.
Deste modo, nela se pavimenta um terreno acima de tudo político, pois nele germinam os meios para se questionar, combater e alterar conjunturas, o que interfere profundamente no jogo social de interesses. Por isso, o movimento de reforma que assistimos hoje é ponto nevrálgico para a formação das futuras gerações, e demanda profunda participação e questionamento da população.
Em 2017, ainda no governo Temer, por meio da lei n.º 13.415, foi aprovada uma primeira reforma do ensino médio, cujos impactos negativos já podem ser sentidos, agora que as primeiras turmas de secundaristas estão se formando no novo modelo. Para começar, a carga horária foi aumentada de 2400 para 3000 horas ao longo dos 3 anos do ensino médio, instaurando um regime integral. Mas embora a carga aumentasse, as tradicionais matérias como português, matemática, química e biologia perderam espaço e deixaram de ser componente principal, passando de 2400 para 1800 horas, e as demais 1200 foram ocupadas pelos chamados “itinerários formativos”. Sendo cinco ao todo, eles subdividem as tradicionais áreas do conhecimento e incluem uma quinta, a de “formação técnica”.
O início do imbróglio está no fato de que 51% dos municípios brasileiros contam somente com uma escola pública, faltam recurso e estrutura, e como não há obrigatoriedade de oferta de todos os itinerários, os alunos ficam coagidos às condições de oferta locais, sem ter acesso adequado a todas as áreas do conhecimento. Os itinerários em si representam um grande infortúnio. Se, antes, havia uma grade consolidada de conteúdos, com base em conhecimento e embasamento científico, agora, em nome da “inovação e da dinamicidade”, apetrechos discursivos da moda neoliberal, as ementas são vagas, os conteúdos desestruturados e o tempo dos jovens é ocupado não mais com trigonometria, escolas literárias e taxonomia celular, mas com matérias como “projeto de vida”; “empreendedorismo”; “o que rola por aí?”; “brigadeiro caseiro” e “quem és tu, cidadão?”. Somente português e matemática permanecem obrigatórias durante os 3 anos.
Não há aqui a inexistência de substâncias relevantes para análise, como o conceito de cidadania, questões existenciais e as novas dinâmicas da sociedade em rede. O problema jaz sobre o fato de que esses pontos eram costumeiramente abordados de forma articulada em matérias como filosofia e sociologia, conquanto hoje são ofertadas por professores sem formação na área ou capacitação, graças à brecha jurídica aberta pela lei quando cita profissionais com “notório saber”, sem estabelecer as exigências formativas adequadas para, de fato, comprovar tal saber. Mas o segredo está em quem puxa as cordas ocultamente, pois aqui, sob a persuasão das tendências do mercado, as novas disciplinas que surgem a cada dia são porta aberta para a compra de material produzido por instituições privadas de ensino.
Essas são as maiores interessadas, especialmente no quinto itinerário, de ensino profissionalizante. Embora o discurso oficial seja buscar “o maior dinamismo do ensino, com foco em atividades práticas e preparação técnica para a inserção do estudante no mercado de trabalho”, a realidade é mais subversiva. Trata-se de abrir à iniciativa privada a porta dos cofres públicos para um “feirão” de cursos precários que menos preparam do que ludibriam com discursos sobre empreendedorismo e meritocracia para aqueles que são privados de qualquer oportunidade.
Agora, em 2024, tramita um novo projeto de reforma. A versão do texto aprovada na Câmara aumentaria a carga básica para 2400 horas, mas a proposta já foi alterada no Senado pela nova relatora, Professora Dorinha (União Brasil – TO), para 2200 horas. Além disso, as matérias tresloucadas persistem, e o fato de serem variáveis de estado para estado rompe com uma lógica de base de conhecimento científico comum partilhado. Com a carga anterior, de 2400 horas, já era frequente a crítica de educadores sobre a insuficiência de carga horária para abordagem dos conteúdos de forma adequadamente profunda. Assim, não surpreenderá o aumento de força de discursos negacionistas e anticientíficos, uma vez que, escolhido um itinerário, reduz-se o contato do aluno com outros ramos do conhecimento.
O processo não se trata de um infeliz revés de um sistema novo em experimentação, mas de uma arbitrariedade programada. Como já afirmou Darcy Ribeiro, sociólogo e ex ministro da educação, a crise da educação no Brasil não se trata realmente de uma crise, mas de um projeto político deflagrado. Toda essa genealogia é favorável aos movimentos de extrema direita e às elites que buscam, além da legitimação do seu domínio e da manutenção das estruturas de exploração, uma população disciplinada e submissa. Foucault, analisando as estruturas de dominação social, descreveu o fenômeno dos corpos dóceis, indivíduos subservientes e não questionadores, formados a partir de um conjunto de fatores jurídicos, policiais, discursos morais e regras de conduta que serviam tão somente para silenciar o espírito revoltoso das massas e fazê-las trabalhar incansavelmente para o incremento do capital.
O objetivo desta reforma não é outro que não a institucionalização de centros de adestramento de sujeitos dóceis trajados de escolas, pois há uma marcação de classe e racial nos afetados: enquanto as escolas públicas são constrangidas aos contingenciamentos de recursos, impactando profundamente a qualidade do ensino fornecimento às populações mais pobres, negras em sua maioria, as escolas privadas seguem fornecendo às elites aulas mais completas, com professores especializados e os recursos necessários à formação dos novos líderes do amanhã. Trata-se de um projeto de atrofia cognitiva progressiva das novas juventudes pobres, de inacessibilidade ao ensino superior, cujos vestibulares seguirão criteriosos, e da conformidade das classes mais baixas com as condições de vida que lhe forem dadas, pois, no desejo das elites brasileiras, o senhor quer voltar para a casa grande e observar satisfeito o trabalho dos corpos miseráveis na senzala.





